Luíza Maria Rodrigues, a Lú como é conhecida, não passa despercebida pelos corredores do Fórum da Comarca de Colinas. É que ela, como dizem, é a história viva do Judiciário na cidade. Começou a trabalhar no então Norte de Goiás, e de lá pra cá são quase 30 anos. “Cheguei ao Judiciário em 1984, fiquei na informalidade até 1988 e fui efetivada em concurso público, em 1994”.
Passou pela Vara Criminal, Vara da Família, Infância e Juventude, pelo Cartório de Registro de Imóveis e Notas, acumulou função no 1º Civil, e como secretária do fórum. Ocupando o cargo de técnico judiciário, tem sua história de vida atrelada às do Judiciário tocantinense, que se desenvolveu e evoluiu nestas mais de três décadas.
Quando cheguei era estado de Goiás, era o extremo norte goiano, muito distante da Capital. Na época, as instalações do prédio do fórum e a estrutura eram péssimas. Quando chovia, descia corrente de água pelos canos das salas, não tinha ar-condicionado, tinha apenas um ventilador, que era de propriedade particular, o servidor que levava. Os materiais de expediente eram muito escassos. Era uma escassez horrível! Para fazer júri, era preciso pedir emprestada a cessão de plenários, de clubes. Fizemos Plenário na Câmara Municipal, no clube, no Salão Paroquial, relembra.
A servidora Luíza é capa do mês de Novembro no calendário institucional 2024. O produto, juntamente com a agenda, faz parte do kit comemorativo dos 35 Anos do TJTO e traz uma série especial com homenagens a pessoas que contribuíram para a construção da história da Casa de Justiça. As 11 histórias estão publicadas no site do TJTO e o acesso pode ser feito pelo QR Code disponível em cada mês do calendário.
Se as dificuldades moldam e servem de experiência, as situações inusitadas também não são em vão. Elas marcam, ensinam. E Lú viu de tudo um pouco no Fórum de Colinas. Ela se lembra de uma audiência admonitória (juiz explica ao apenado sobre as medidas que devem ser cumpridas, sob pena da regressão de regime), conduzida pela desembargadora Etelvina Maria Sampaio Felipe, que na época era juíza da Vara Criminal. Hoje a magistrada é presidente do Tribunal de Justiça.
A história é de uma mulher idosa que foi processada por curandeirismo, condenada e beneficiada com a suspensão condicional. Lú conta que, no dia da audiência, a então juíza Etelvina foi instruí-la sobre o cumprimento das condições relacionadas à suspensão e, ao dizer que ela não podia mais prescrever medicamento às pessoas porque ela não era a médica, a senhora não concordou, afirmando que quem passava as receitas médicas eram as entidades que ela incorporava.
Em meio ao impasse de aceitar ou não a condição da juíza, a mulher perguntou se a magistrada não queria conversar com a entidade. Então, a magistrada disse que não precisava, mesmo assim, ela insistiu. “Ela fez um movimento, como se fosse de incorporação. E a doutora Etelvina levantou da mesa, se afastou, assim, para a extremidade. Ainda chamou atenção dela, dizendo para não fazer mais isso e ela ficou caladinha.”
Esse é só mais um fato dos inúmeros presenciados pela Lú. “Na nossa realidade, final da década de 80, as pessoas tinham menos recursos e o acesso à assistência médica, hospitalar era mais difícil. As pessoas recorriam a meios alternativos. Curas miraculosas, curas por meio de recursos espirituais. Tinha muita gente da população que fazia tratamento com ela. Nunca mais eu vi, nem nas sessões de julgamento de crimes que provocaram comoção social, tanta gente como na audiência dessa senhora.”
Mais do que se lembrar dos inúmeros episódios de cidadãos e cidadãs que recorreram à justiça, Lú tem uma história de luta, de pioneirismo e resignificação que marcam os 35 anos do Judiciário tocantinense.
Em 2004, após quatro anos de tratamento clínico, psicológico, ela foi submetida a uma cirurgia de redesignação sexual ou transgenitalização e, na sequência, em 2007, conseguiu na Justiça a mudança do nome para o gênero com o qual se identifica. “São recorridos quase 20 anos. Fui pioneira no Tocantins, tanto pela intervenção cirúrgica quanto pela alteração de nome. Foi uma forma de eliminar os constrangimentos que eu sujeitava ao longo da minha vida, em qualquer situação onde era necessário apresentar a documentação de identidade. Era um constrangimento, era um sentimento horrível.”
A decisão que possibilitou a mudança de nome foi precursora no Judiciário do Tocantins e possibilitou que outras pessoas também fossem em busca de seus direitos. “Não foi apenas pelo fato de eu ser uma servidora, isso não facilitou em nada. Tudo que está começando é mais criterioso. O próprio Judiciário preocupa em se respaldar, com provas e tudo mais. Hoje em dia, muitas meninas (os) não precisam submeter a essa cirurgia para conseguir alterar seus nomes.”
A mudança de nome teve o gosto de liberdade, como teve a cirurgia. “No mesmo dia, quando eu acordei da cirurgia, eu estava radiante, é como se eu de repente estivesse tirado um peso enorme de cima de mim. E a sensação que eu tive é como se eu fosse um pássaro na gaiola, e abriram-se as portas e eu estava me sentindo livre.”
Lú enfatiza que decisões, como a de mudança de nome, passam por questões constitucionais, como o princípio da dignidade da pessoa humana, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano.
Nós sabemos que o Judiciário tem que ter a preocupação não só com o aspecto material da questão, mas também com o aspecto subjetivo, no sentido de favorecer, fomentar, criar, viabilizar melhores condições de vida para os jurisdicionados”, conta. “A partir do momento que se dá uma resposta para eliminar constrangimento, para deixar pessoas se sentirem mais integradas, deixar pessoas mais felizes, isso é importante até para a saúde mental. A saúde mental deve ser também uma preocupação do Judiciário e não só as demandas que mexem com interesse patrimonial, interesses materiais, mas também essa questão do bem-estar.
“Falo para as pessoas que mesmo se não tivesse feito cirurgia nenhuma, eu seria mulher do mesmo jeito. Não é a cirurgia que faz homem ou mulher, não é uma genitália que faz um homem ou uma mulher, é o sentimento, é a essência da pessoa, o que ela traz dentro de si. É esse o sentimento.”
Questionada sobre a Lú que está há quase 30 anos no Judiciário, a resposta é um exemplo de cidadania: “A Lú, eu diria, sou uma simples servidora que encaro meu trabalho como sacerdócio. Eu acredito que todos os seres humanos, independentemente de serem servidores públicos ou não, quem é pai, quem é mãe, quem é professora... Qualquer pessoa está em um determinado local, num determinado cargo, numa determinada função, num determinado ambiente, numa determinada família, no meu entendimento, é porque tem uma missão a cumprir aqui, um papel a desenvolver ali. Nós estamos ali para servir à sociedade por aquela via. Eu vou mais longe, acredito que por trás de tudo isso existe uma providência divina.”
Conheça a Lú - Possui graduação em Letras - Inglês pela Fundação Universidade Federal do Tocantins (2010) e graduação em Direito pela Faculdade Integrada de Ensino Superior de Colinas (2012), bem como possui especialização em Criminologia e Ciências Criminais (2016/UFT) e é mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos (2017/UFT). Atualmente exerce a função de técnica judiciária de 1ª instância - Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, lotada na Vara Criminal da Comarca de Colinas do Tocantins. Tem experiência na área de docência.
Se precisar, entre em contato.
© 2024 Diretoria de Gestão de Pessoas - DIGEP
Versão do Sistema